Começou faz umas duas semanas Da noite para o dia, ele ficou muito mais recolhido do que de costume Tudo assustava ele Qualquer som fazia ele perder a paz A cada passo temeroso que ele arriscava Eu notava uma insegurança que ele nunca tinha mostrado antes Não demorou para que eu entendesse qual era o problema Ele estava no meio de um processo inesperado de perda de visão Que se acentuou drasticamente do nada À medida que a percepção visual dele ficava mais nebulosa Embaçada, indefinida, sua alegria também sumiu Nossos pequenos rituais não eram mais possíveis Tentei interagir com ele como sempre fiz desde os primeiros dias Em que estivemos juntos, obviamente de uma forma mais devagar E comedida do que antes, mas os reflexos já não estavam lá Em vez de trazer calma, minha tentativa de simular a antiga normalidade Só o deixou ainda mais abalado Hoje, quando cheguei em casa, ele rosnou como se eu fosse um estranho Nem o som da minha voz fez com que ele me reconhecesse Me abaixei, ofereci as costas da minha mão para ele Só assim ele conseguiu me identificar Talvez eu esteja vendo coisas onde não existe nada Mas realmente me pareceu que ele ficou constrangido E sentido por não ter percebido logo quem eu era Estou tentando não me abater Tentando transmitir a força que eu sei que meu amigo precisa nesse momento Me identifico em voz alta toda hora Sempre aviso quando vou encostar nele Quando chega a hora de aplicar os remédios Que eu torço que tragam de volta um pouco da sua capacidade de enxergar Descrevo o que está acontecendo, quem está por perto O que ele está prestes a comer Não sei se estou fazendo a coisa certa Torço para que os meus monólogos façam algum sentido aos seus ouvidos Faço isso para que a minha presença o conforte de alguma maneira Para que ele tenha a segurança de que eu seguirei ao seu lado como guia Como protetor, como família, como quer que ele precise de mim Algum bem, alguma diferença para alguém eu tenho que fazer nesse mundo Ruídos que só agora eu posso notar Objetos inanimados parecem espernear Eu caminho temeroso tentando me equilibrar O chão se mexe, as paredes mudam de lugar A escuridão é tanta que eu nem sei Se meus olhos estão abertos ou fechados Proximidade, eu já não sei calcular Perto ou longe, eu não consigo julgar Eu me choco contra a solidez do ar Eu abdico do que for preciso abdicar A escuridão é tanta que eu nem sei Se meus olhos estão abertos ou fechados Caiu um raio Bem do nosso lado Foi um susto inimaginável Eu nem me reconheci de tão apavorado Eis o breu Está perdido quem se deixar enganar Pela traiçoeira quietude do breu Minha busca É por qualquer resquício De bravura Que ainda resida em mim Mas qual bravura ainda reside em mim? Eis o breu Por que isso tinha que acontecer Logo com você? Por que justamente com a gente? Por que isso tinha que acontecer Logo com você?